ANARQUISMO E CRÍTICA DA VIDA COTIDIANA: anarcopunx e autogestão integral da vida – Marcelo Sandoval Vargas – R$ 5,00 mais envio.
Pensamento anarquista e crítica da vida cotidiana (capitulo 1 do livreto)
Marcelo Sandoval Vargas
ANARQUISMO COMO PENSAMENTO CRÍTICO?
Em que sentido é válido falar sobre pensamento crítico hoje, em um presente de guerra total contra a humanidade? E, nessa perspectiva, a partir de que parâmetros é possível considerar o horizonte ético-político libertário como pensamento crítico? Especialmente quando o anarquismo é geralmente considerado “como o parente pobre do marxismo, teoricamente um pouco fraco, mas ideologicamente compensando, talvez, com paixão e sinceridade “[1], e somando-se a isso, as referências ao seu futuro
(…) eles assumem que ele é basicamente semelhante ao marxismo: o anarquismo é apresentado como uma invenção de certos pensadores do século XIX (Proudhon, Bakunin, Kropotkin…) que depois serviu para inspirar as organizações da classe trabalhadora, envolver-se em lutas políticas, dividir-se em correntes…[2].
Por pensamento crítico quero dizer, em primeiro lugar, aquele que existe apenas como crise e negação, ou seja, uma elucidação que sempre evoca as possibilidades de institucionalização, de ser recuperada pelo capital, que se recusa a desviar sua força destrutiva para o espaço-tempo da sociedade do espetáculo. Em segundo lugar, ela só surge como parte de uma prática existencial e política radical: anticapitalista, antiestatal, antipatriarcal e anticolonial. E, em terceiro lugar, é um pensamento histórico, tendo como ponto de partida “o sujeito existente que produz a si mesmo,
tornando-se mestre e senhor de seu mundo, que é a história, e só pode existir como a consciência de sua atividade “[3].
Qualquer teorização que defenda os ideais liberais reivindicando liberdades políticas (direitos humanos, cidadania dos sujeitos, midiatização e despolitização da vida) para esconder a guerra social; que proponha o relativismo pós-moderno como uma naturalização da hierarquia e da exploração, como uma forma de tornar invisível a luta de classes; ou que justifica o autoritarismo e a substituição de um dominador por um novo, sob um argumento que se apresenta como esquerdista e revolucionário, nada mais são do que expressões diferentes do mesmo pensamento fraco [4], no qual a prática radical, em que os meios e o fim não estão separados, está ausente. Como sabemos
(…) a práxis revolucionária existe e podemos citar exemplos como a auto-organização dos bairros na Grécia, a conduta dos curdos sírios na guerra contra várias autoridades, as lutas dos povos indígenas e dos colonos mexicanos, o movimento Passe Livre no Brasil, a revolta mapuche no Chile… Por outro lado, não podemos afirmar com igual categoricidade que exista uma teoria revolucionária, mas, afinal, embora não exista uma teoria unitária que sirva para a compreensão da época atual e a explique com contundência, seu campo tampouco é um deserto, já que há amplas evidências da existência de um pensamento livre, que se manifesta em revistas, livros, rádios livres, palestras, etc. Felizmente, o pensamento fraco ainda não é a norma [5].
Portanto, o anarquismo como uma “forma de existência contra a dominação”[6], em que a ideia e o fazer se fundem em um mesmo procedimento, é um pensamento crítico. É uma tentativa de romper com toda teoria estática e atemporal, uma vez que se situa como uma deriva reflexiva que se ressignifica a partir de cada tempo-agora, dos sujeitos e de sua atividade de autocriação, onde “construir o presente é corrigir o passado, mudar os sinais da paisagem, liberar os sonhos e os desejos insaciáveis de sua gangorra”[7].
Assim, a relevância da elucidação crítica está na “importância da negação, do não-conformismo. O maior obstáculo ao livre exame é a submissão ao episteme de uma época”[8]. O que o torna crítico é manter-se em confronto com a realidade, ou seja, a partir do conflito entre a dominação e a irrupção de possibilidades emancipatórias, bem como consigo mesmo. Somente isso pode evitar que ele se torne um dogma.
O anarquismo, como horizonte ético-político, posiciona-se dentro da tradição dos oprimidos[9], daquela constelação rebelde que se institui a partir de práticas e projetos radicais. Como elucubração crítica e reflexiva que questiona o instituído, busca desvendar as fantasmagorias que encobrem a sociedade heterônoma em sua forma capitalista: o trabalho, a pátria, o governo, a família burguesa, a religião….
Embora o movimento libertário tenha sido desprezado e sua participação em uma variedade de experiências revolucionárias de revolta e organização tenha sido ocultada; embora tenha sido silenciado o fato de que o horizonte libertário é parte integrante das constelações revolucionárias de, pelo menos, os últimos 170 anos, as formas anarquistas de política têm como objetivo desfazer a dominação em todas as suas formas e manifestações; o movimento libertário não apenas se posiciona contra o capitalismo e o estado, mas também contra o patriarcado, o autoritarismo, as formas de poder coercitivo, a exploração e a mercantilização da natureza.
A potencialidade do pensamento crítico reside, então, em fazer uma crise do existente, na negatividade que significa um devir, uma existência que se configura como uma rejeição unitária do existente. Não se reduz a uma crítica plana do dado: um discurso pseudocrítico que permanece no aparente (porque é um olhar alienado) e superficial, naturalizando-o, com o qual acaba forjando uma empatia com os vencedores, com os opressores. Ao contrário, é uma rebelião que irrompe simultaneamente como fazer e pensar, com o objetivo de criar formas de vida intensas e apaixonadas no aqui e agora. O que é evocado é uma revolução da vida cotidiana, entendida como a destruição de tudo o que nos aliena, que nos separa[10] e nos impede de construir uma vida unificada.