INSERÇÃO SOCIAL OU DISSOLUÇÃO NO MOVIMENTO SOCIAL? – Inaê Diana Ashokasundari Shravya

De um tempo para cá se tornou quase unânime a palavra de ordem no meio anarquista: “precisamos nos inserir socialmente!”. Não deixa de ter lá a sua verdade, mas a maneira como essa tentativa de inserção social tem se dado não tem sido bem-sucedida. Eu não tenho a intenção em me aprofundar em determinados aspectos neste texto, embora considere fundamental uma análise mais extensa da situação.

As organizações anarquistas que fazem questão de se declararem aos quatro cantos como “anarquismo organizado” são incapazes de perceber que, na sua tentativa de se inserir socialmente, elas são dissolvidas pelo próprio movimento social no qual tentam se inserir. Ao que me parece, esta incapacidade provém da precariedade teórica dessas organizações. Isto se torna perceptível na própria concepção de federação dessas organizações. Ela destoa da definição conceitual historicamente apresentada pela filosofia anarquista: uma federação interconecta fragmentos, a comuna sendo o exemplo de um fragmento[1].

A federação, na concepção anarquista, pode ser compreendida tomando como ilustração a geometria fractal. A fractalidade própria da comuna não é um problema em si, exceto se ela se fecha sobre si mesma – e este é, sem sombra de dúvida, o caso dos nacionalismos e das seitas. A solidariedade não é uma frase de para-choque de caminhão, mas a veracidade da própria vida. Gostemos ou não – e tendemos a não gostar devido ao individualismo que ainda nos impregna violentamente-, coexistimos interdependentemente. Isto pode inclusive soar desagradável para certos indivíduos que eu denominaria “anarquistas de buzzfeed”, mas ser livre não tem nada a ver com independência das demais pessoas. Se a liberdade do outro expande a minha, é exatamente porque há uma modificação das relações de determinação na prática de liberdade. Interdependência e dominação não são sinônimos, importa dizer. Se eu compreendo essa relação de interdependência – ou interconexão -, me torno capacitada a compreender a própria dinâmica dos movimentos sociais. A falta desta compreensão, oriunda duma precariedade teórica, me impossibilita inclusive de perceber a distância inferencial[2] existente entre a organização e o movimento ao qual ela tenta se aproximar. Disto resulta que, ou 1) ela tomará como aprioristicamente válidas quaisquer conclusões que venham a ter sobre determinado movimento – liderança ou comando é negativa em qualquer circunstância, sem considerar a sua função dentro do movimento preto radical, por exemplo (embora a “crítica”, que mais performa um ataque, talvez seja sintomática duma medida medíocre de tentar conduzir um movimento pela sua falta de orientação, o que sabemos que ocorre com certa frequência e não dá em nada efetivo)- ou 2) participará para atribuições categóricas gratuitas – como a acusação de que determinado movimento é separatista, quando na verdade, o movimento em questão simplesmente compreende suas próprias determinações e não se rende à atitude sacrificial própria de militantes neostalinistas delirantes -, trocando uma abordagem materialista por uma idealista radical, que aos olhos leigos pode parecer “bastante materialista”.

Um outro aspecto um tanto confuso é o referente a um tal “anarquismo organizado”, o que sustenta equívocos relacionados ao anarquismo, tais como o de que é possível participar do movimento anarquista sem se estar minimamente organizada. Quer dizer, já é estranho, ao meu ver, um movimento que se pressupõe socialista, sugerir que é possível não estar minimamente organizado, ainda que o fato de coexistirmos socialmente demonstre que estamos organizados, conscientes desta organização ou não. O modo de produção capitalista não produz apenas mercadorias, mas também subjetividades. Esta produção se dá em meio a relações sociais determinadas. Mas é preciso ter cautela: isto não significa que devemos então conscientizar as pessoas, como se fôssemos as mentes condutoras da revolução. O fetichismo da organização parece um efeito da aproximação de grupos anarquistas com grupos trotskystas, assim como o fetichismo da       ação       parece       resultante       da        aproximação        com        grupos        maoistas. Agir impulsivamente expõe a ausência duma alternativa política. O fetichismo da organização, explícito por exemplo na proposição “organize-se!”, ignora por completo as associações e agrupamentos já existentes, pois elas se articulam de outra maneira. Se não somos capazes de diagnosticar essas outras formas de articulação, não somos, por conseguinte, capazes de radicalizar essas lutas, pois tentamos enquadrá-las na maneira como atuamos[3]. Isto tende a um imobilismo patológico bastante presente nessas “organizações organizadas”.

O que precisamos compreender, enquanto anarquistas, é a necessidade de radicalizar os movimentos sociais e as lutas específicas. Radicalizar, sim, pois ao radicalizá-las, as aproximamos da luta proletária. Se algumas organizações e os indivíduos que as compõem não compreendem como as lutas específicas se relacionam com a luta proletária, é por uma precariedade teórica, quase sempre presente sob a alegação de que “os clássicos são chatos e não nos dizem nada”. O que provém daí? A resposta é simples: se não compreendemos que já estamos minimante organizados, também não compreendemos como já nos encontramos inseridos socialmente. A imagem que se produz é a de que anarquistas são mão de obra gratuita   – e caridosa – para os movimentos sociais, às vezes servindo até como tapa buraco de problemas do Estado, quando deveríamos ter clara e distinta a nossa posição.

NOTAS:

[1]       O melhor exemplo dessa destoação é a finada Federação Anarquista do Rio de Janeiro – FARJ, cujo núcleo de indivíduos que a compunham, também conhecido como “núcleo duro”, possuía um comportamento próprio de seita. Pelo visto o anarquismo só serve de conteúdo para o carreirismo acadêmico de um de seus “teóricos” (?) mais conhecidos, que vive destilando indiretas nada venenosas na sua confortável conta no X (antigo Twitter), sem qualquer compromisso de luta.

[2]       A respeito dessa distância inferencial, ela corresponde a partilhas do sensível no interior de comunidades. Programas como o Show do Milhão e outros mais, mostram como há uma distância inferencial e que ela implica diretamente no entendimento adequado ou não de determinadas proposições. Costumamos rir da pessoa que não entendeu determinada pergunta assistindo compilados de “maiores burrices” feitas por canais de YouTube, mas não percebemos que essa falta de entendimento ocorre inclusive em relação às nossas proposições, embora tenha muito militante que se contente em chamar um proletário de burro. Lembro de parte da minha infância, minha mãe empregada doméstica e o meu pai que trabalhava com bicos, ambos não haviam sequer chegado ao Ensino Médio. Para eles, “classe” correspondia a “elegância”, não a uma posição na produção. Isto não significa que devemos reduzir a nossa produção teórica ao senso comum, o que seria novamente uma forma de idealista, desta vez relacionada a uma suposta “pureza” do proletariado, como se não houvesse uma ideologia os orientando – idealismo este que não compreende que o pobre de Direita é sinônimo de que a Educação deu certo e vai muito bem, pois a Educação, dentro duma sociedade capitalista, vai atender às exigências do capitalismo (FMI, por exemplo) e realizará a sua manutenção.

[3]Um exemplo é o atual apoio incondicional à Palestina, caindo num maniqueísmo ingênuo: ou se apoia Israel ou se apoia a Palestina, estranhamente transfigurada no Hamas. Não foram poucos os anarquistas que defenderam a atitude do Hamas como se ela fosse a única atitude possível dum povo oprimido e como se ela fosse uma atitude revolucionária. Isto não significa que as/os nossas/os irmãs/os palestinas/os não devam se defender, mas sim que somos incapazes de imaginar outras formas de resistência. Além do mais, esse apoio à Palestina, uma multidão bem complexa, reduzida ao Hamas, que inclusive teve apoio de Netanyahu, segundo o Haaretz, demonstra o quão a precariedade teórica nos torna submissos ao capitalismo e ao colonialismo, nos levando a apoiar grupos teocráticos que inclusive não tem pleno apoio do povo palestino. A alegação a favor do apoio incondicional é a de que qualquer crítica, neste momento, é contraproducente. O que me parece contraproducente é trocar a submissão a Israel por uma teocrática. Atitude semelhante foi tomada face à guerra entre Ucrânia e Rússia. Tomar qualquer um dos lados (Ucrânia ou Rússia) é por si só se posicionar contra o proletariado.

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